Goiânia, 03 de fevereiro de 2012.
À Sociedade Brasileira
Nós ‐ extrativistas, agroextrativistas, agricultores familiares, assentados, mulheres quebradeiras de coco babaçu, vazanteiros, ribeirinhos, geraizeiros, retireiros e pescadores dos estados de Goiás, Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão e Piauí, reunidos na cidade de Goiânia nos dias 1 e 2 de fevereiro de 2012, após avaliação e análise criteriosa do que vem ocorrendo nos cerrados brasileiros, vimos a público informar e exigir providências imediatas diante da grave situação que se encontra esse bioma e seus povos. Para isso destacamos:
Até hoje, tanto o Executivo como o Legislativo sequer se dignaram a votar o pleito antigo dos Povos dos Cerrado de considerar nosso bioma como Patrimônio Nacional como são reconhecidos a Amazônia, o Pantanal e a Mata Atlântica. Por quê? Por quê?
Ignora‐se que esse bioma detém mais de um terço da diversidade biológica do país?
Ignora‐se que é no Cerrado que se formam os rios que conformam as grandes bacias hidrográficas brasileiras como a do São Francisco, a do Doce, a do Jequitinhonha, a do Jaguaribe, a do Parnaíba, a do Araguaia/Tocantins, do Xingu, do Tapajós e Madeira (da bacia amazônica), além dos formadores da bacia do Paraguai e do Paraná/bacia do Prata?
Ignora‐se que estão relacionadas ao Cerrado as duas maiores áreas alagadas continentais do planeta, ou seja, o Pantanal e o Araguaia?
Ignora‐se, como disse Guimarães Rosa, que o Cerrado é uma caixa d’água?
O que mais se precisa para reconhecer esse rico bioma como patrimônio nacional? Por que não? Por que não?
Ignora‐se que esse bioma é o único bioma que tem vizinhança com todos os outros biomas brasileiros (com a Amazônia, com a Caatinga, com a Mata Atlântica, com a Mata de Araucária)?
Ignora‐se que somente essas áreas de contato correspondem a 14% do território brasileiro que somados aos 22% do bioma Cerrado correspondem a 36% do nosso território?
Ignora‐se que esses 14% do território de contato com o bioma Cerrado a outros biomas são áreas de enorme complexidade e ainda maior diversidade biológica?
Ignora‐se que nessas áreas, particularmente, o conhecimento em detalhe, o conhecimento local, é de enorme valia e que o Brasil detém um acervo enorme desse conhecimento com suas populações camponesas, indígenas e quilombolas que, assim, se mostram importantes para a sociedade brasileira, para a humanidade e para o planeta?
Não se pode ignorar tudo isso que clama por reconhecimento. Exigimos tanto do Executivo quanto do Legislativo que reconheçam o Cerrado, enfim como Patrimônio Nacional. Mesmo assim cabe a sociedade brasileira e a humanidade indagar porque o Cerrado continua sendo esquecido.
De nossa parte, como populações extrativistas e agroextrativistas do Cerrado temos envidados nossos melhores esforços para que tenhamos uma política socioambiental, justa, democrática e responsável.
Aprendemos com nossos irmãos amazônicos, sobretudo com os seringueiros e seu líder Chico Mendes que não há defesa de nenhum bioma sem seus povos. É de Chico Mendes a máxima, “não há defesa da floresta, sem os povos da floresta”. Daí dizermos em alto e bom tom: Não há defesa do Cerrado sem os povos do Cerrado.
O conhecimento de nossos povos e etnias desenvolvido com o Cerrado é essencial para sua preservação. Com todo o respeito que nutrimos pelo saber científico sabemos que o conhecimento e a sabedoria desenvolvidos há milênios e séculos pelos camponeses e indígenas é um acervo fundamental que colocamos a disposição para um diálogo com qualquer outro saber.
Daí a convicção que temos da importância de nosso conhecimento, reconhecido por vários cientistas e pesquisadores do Brasil e do exterior, surgiu a idéia de lutarmos por Reservas Extrativistas no Cerrado. Desde o início dos anos 1990 que vimos nessa luta, sabemos que a política socioambiental não pode se restringir à punição e à fiscalização. Ela tem que ser propositiva e ser positiva. Para isso propomos as Reservas Extrativistas onde nosso conhecimento tradicionalmente desenvolvido pode contribuir para a preservação e conservação do Cerrado garantindo uma vida digna para seus povos. Todavia como andamos?
No balanço que fizemos nesses dois dias de trabalho intenso constatamos que nas 30 Resex’s, tanto nas já decretadas como nas que estão em processo de reconhecimento e regularização, a situação das comunidades foi sensivelmente deteriorada pelo completo descaso das autoridades, sobretudo em resolver o problema fundiário, esse nó estrutural que impede até hoje que a sociedade brasileira seja mais justa e feliz.
O fato dessas áreas terem sido decretadas ou estarem em processo de decretação sem que o problema fundiário tenha sido resolvido, tem feito com que os fazendeiros que deveriam ser indenizados pelo poder público, passem a impedir que a população local tenha acesso para a coletar o baru, o pequi, a fava d’anta, o babaçu e mais de uma centenas de outros produtos com que temos sobrevivido e oferecido à sociedade alimentos, remédios e bebidas.
Desde que o ICMBIO foi criado em 2007 nenhuma Resex foi criada no Cerrado. Olhado da perspectiva dos Povos do Cerrado o ICMBIO não faz jus ao nome de um dos nossos companheiros que morreu por sua justa luta, para afirmar um paradigma, onde a defesa da natureza não se faça contra os povos mas, ao contrário, se faça através deles. Em função dessa omissão das autoridades cuja responsabilidade pública as obriga a zelar pelo patrimônio natural, uma das entidades de nossa articulação entrou com uma ação pública civil junto ao Ministério Público. Todavia, passado 1 ano sequer nossa ação mereceu qualquer resposta por parte do Ministério Público, apesar de ser uma denúncia de prevaricação de um órgão público. A julgar pelos dados oficiais que nos informa que no último ano foram desmatados somente no Cerrado 646 mil hectares, o que perfaz um total de 1.772,33 hectares por dia, podemos dizer que a cada dia que o Ministério Público deixa de se pronunciar e, assim, de julgar o crime de prevaricação, deixa de evitar que mais de mil e setecentos hectares sejam desmatados diariamente. A palavra está com o Ministério Público enquanto a nossa realidade espera com devastação e insegurança. Tudo isso alimenta um lamentável clima de impunidade.
Ignora‐se que muitos remédios que curam o glaucoma, a hipertensão arterial depende de frutos colhidos por nós, como é o caso faveira/fava d’anta de onde se extrai mais de 90% da rutina, substância química para esses remédios. Ignora‐se, e por ignorância alimenta‐se o preconceito, que essas populações podem viver dignamente dessas atividades, como provamos que numa área com 4 arvores adultas de baru se obtém mais renda do que em um hectare plantado com soja.
Enfim, precisamos ter uma política que dialogue com nossa cultura, com nossos povos para que se tenha um viver bem com justiça social e responsabilidade ecológica. Mas para isso é preciso que as autoridades viabilizem as Resex’s no Cerrado. Toda nossa mobilização encontra a desculpa pouco crível da falta de recursos. Bem sabemos que se há falta recurso é preciso estabelecer prioridades. Isso é fundamental na política. Desse modo, a falta de recursos acaba sendo a confissão pública de que as Resex’s no Cerrado não são prioridade. Mas sabemos que o argumento da falta de recurso é um argumento em si mesmo falso. Afinal, o governo tem anunciado publicamente sua eficiência no recolhimento dos impostos que a cada ano engorda mais a receita federal. O nosso governo tem anunciado ainda os sucessivos saldos, nas contas externas, como prova de seu êxito. Se tanto êxito há na entrada de divisas no país e no recolhimento de impostos da receita federal como se sustenta o argumento de que não há recursos?
Mais grave ainda, é o fato de que aqueles que como nós, vimos lutando por essas reservas extrativistas estamos expostos à truculência não só dos fazendeiros que nos impedem o acesso das áreas onde tradicionalmente colhemos, como também da expansão do latifúndio da monocultura de exportação de soja, da monocultura de algodão, da monocultura de eucalipto, da monocultura de pinus, da monocultura de girassol, da invasão de madeireiros, da expansão de carvoarias para fazer carvão para ferro gusa e exportar minério puro para mineradoras que vem crescendo sobre nossas áreas da pressão para a construção de barragens que, via de regra, servem de base para a exploração mineral para exportação. Todos esses setores foram nominalmente citados na avaliação criteriosa das ameaças de cada uma das Resex’s criadas e em processo de criação nos cerrados.
A truculência dos que ameaçam se concretiza na ameaça de morte aos nossos companheiros e companheiras que se vêem obrigados, tal e como na época da ditadura, a viverem escondidos longe de suas famílias. Exigimos das autoridades todas as providências para a garantia das vidas de Osmar Alves de Souza do município de São Domingos/GO; de Francisca Lustosa do município de Tanque/PI, Maria Lucia de Oliveira Agostinho, município de Rio Pardo de Minas/MG; Neurivan Pereira de Farias, município de Formoso/MG, Wedson Batista Campos, município de Aruanã/GO; Adalberto Gomes dos Santos do município de Lassance/MG; Welington Lins dos Santos, município de Buritizeiro/MG; Elaine Santos Silva, município Davinópolis/MA; José da Silva, município de Montezuma/MG.
Responsabilizamos antecipadamente as autoridades pelo que vier acontecer com a vida desses companheiros e dessas companheiras, cujo único crime tem sido o de lutar pela dignidade de suas famílias através da Resex’s. Não queremos que o nome desses companheiros e companheiras venha a se somar ao de Chico Mendes, ao de Dorothy Stang e aos quase 2000 assassinados no campo brasileiro desde 1985, conforme vem acompanhando a Comissão Pastoral da Terra. Temos todas as condições com as Resex’s de oferecer condições de vida digna, com justiça e equidade social com a defesa do Cerrado. Não queremos que nossas famílias venham engordar os dados estatísticos dos que dependem da bolsa família, ou outras bolsas para viver. Respeitamos essa política, até porque a temos como uma conquista do povo brasileiro, mas não vemos como bons olhos o aumento do número dos que vivem dela. A Resex é uma maneira mais sustentável de garantir a sobrevivência digna, como é a reforma agrária. Chico Mendes, dizia que a “Resex era reforma agrária dos seringueiros”. E nós afirmamos que a Resex é a forma de ampliar o significado da reforma agrária ao lhe dar sentido ecológico e cultural.
Este ano o Brasil estará recebendo não só governantes de todo o mundo como diversas populações de todo o planeta na Rio+20. Assim como nós, vários grupos sociais da África, da Ásia e na América Latina que vem sofrendo com avanço sobre suas terras de um agronegócio devastador e uma mineração voraz de minérios e água estarão também aqui presentes.
Esperamos que as autoridades brasileiras estejam a altura de suas responsabilidades de estarem à frente do maior país tropical do mundo e onde se encontram as maiores reservas de água do planeta. Que honre esse fato de ser a tropicalidade caracterizada pela enorme diversidade biológica e que ainda honre por zelar pelo enorme acervo de conhecimentos que está entre as quebradeiras de coco de babaçu, os vazanteiros, os retireiros, os caatingueiros, os pescadores, os geraizeiros para ficarmos com alguns grupos sociais dessa enorme sociodiversidade do Cerrado.
A diversidade biológica e a sociodiversidade, para nós indissociáveis, não podem continuar sendo retórica nos documentos oficiais, sem que haja o rebatimento no orçamento para garantia de solução da questão fundiária. De nada adianta falar de rica biodiversidade se não se garante no orçamento dinheiro para compra de terras.
Sabemos que nossas caras não são as caras que freqüentam as páginas nobres das principais revistas e jornais do país ‐ somos em nossa maior parte mestiços, mulatos, cafuzos, negros, índios, brancos pobres muitas vezes com a cara suja de carvão. Sabemos que o Cerrado tem sido oferecido aos grandes latifúndios do agronegócio, que não só produzem muitas toneladas de grãos, de pasta de celulose, de carnes para exportação como também produzem muita poluição e muito desperdício das águas, produzem muita erosão, produzem monocultura onde há muita diversidade de plantas e animais e ainda produzem muito/as trabalhadore/as rurais sem terras com a concentração de terras e
concentram poder econômico e político e, assim, contribuem para por em risco a democracia. Basta ver o poder que tem as empresas de mineração e dos agronegociantes para fazerem propaganda, financiarem noticiários nas rádios, jornais e TV’s onde, via de regra, somos criminalizados e vistos como aqueles que querem impedir o progresso, como se só houvesse uma maneira de progredir, e como se fôssemos o lado errado.
No entanto, estamos aqui cônscios de que temos muito a dar ao Brasil, à humanidade e ao planeta. Nossa luta não será em vão e, por isso, dizemos com o poeta:
“Nem tudo que é torto é errado,
veja as pernas do Garrincha
e as árvores do Cerrado”. Nicolas Behr
Viva o Cerrado!
Viva os Povos do Cerrado!
O Cerrado não vive por si só!
Que a Rio+20 seja a confluência dos diversos rios de resistência pela cultura e pela natureza!
Assinam:
‐ Rede de Comercialização Solidária de Agricultores Familiares e Extrativistas do Cerrado
‐ Resex Mata Grande, Davinopólis/MA
‐ Resex Lago do Cedro, Aruanã/GO
‐ Resex Recanto das Araras de Terra Ronca, São Domingos/GO
‐ Resex Chapada Limpa, Chapadinha/MA
‐ Resex Chapada Grande, Tanque/PI
‐ Resex Galiota e Córrego das Pedras, Damianopólis/GO
‐ Resex Contagem dos Buritis, São Domingos/GO
‐ Resex Rio da Prata, Posse/GO
‐ Resex Tamanduá/Poções, Riacho dos Machados/MG
‐ Resex Sempre Viva, Lassance/MG
‐ Resex Serra do Múquem, Corinto/MG
‐ Resex Barra do Pacuí, Ibiaí/MG
‐ Resex Três Riachos, Santa Fé de Minas/MG
‐ Resex Brejos da Barra, Barra/BA
‐ Resex Serra do Alemão, Buritizeiro/MG
‐ Resex Curumataí, Buenopólis/MG
‐ Resex Retireiros do Médio Araguaia, Luciara/MT
‐ Resex Areião e Vale do Guará, Rio Pardo de Minas/MG
‐ Cooperativa Mista de Agricultores Familiares, Extrativistas, Pescadores, Vazanteiros e Guias Turísticos do Cerrado ‐ COOPCERRADO
‐ Cooperativa Grande Sertão
‐ Cooperativa de Agricultores Familiares Agroextrativistas de Água Boa II
‐ Associação dos Moradores agricultores familiares de Córrego Verde
‐ Associação dos Retireiros do Médio Araguaia
‐ Associação dos trabalhadores da reserva extrativista Mata Grande/MA
‐ Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu
‐ Associação dos agricultores familiares trabalhando junto
‐ Colônia de Pescadores de Aruanã/GO
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Riacho dos Machados/MG
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Lassance/MG
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Buritizeiro/MG
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Jequitaí/MG
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Santa Fé de Minas/MG
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Ibiaí/MG
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Montezuma/MG
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Davinopólis/MA
‐ Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Tanque/PI
‐ Coordenação do Pólo Sindical do Pólo de Oeiras/PI
‐ Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado‐CEDAC
‐ Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais ‐ CAA
‐ Projeto Chico Fulô
‐ Universidade Federal Fluminense
‐ Federação dos Trabalhadores Rurais de Minas Gerais‐ FETAEMG
Nenhum comentário:
Postar um comentário