Missão da edição é dar um passeio pelo mundo animal para repensarmos noção de inteligência
Um bom tempo atrás, seis ou sete anos, eu acho, resolvi trazer um cachorro para fazer parte da turma de casa. Tentei me informar um pouco sobre as características das diferentes raças, quais se adaptavam melhor à vida numa cidade grande, com todas as restrições que isso acarreta. Depois de encontrar a raça que parecia ser mais adequada e um criador confiável, logo pensei em chamar um intérprete. Mais do que um adestrador, pensei que deveria haver alguém capacitado a ensinar aos humanos da casa, os códigos de linguagem para que conseguíssemos interagir com sucesso com aquela figurinha de poucos meses de vida, que acabava de chegar ao mundo e à nossa casa. Foi um acerto. Um profissional formado em zootecnia pela USP, com especialização em comportamento animal em uma universidade australiana e, principalmente, com anos de prática em zoológicos, trabalhando com animais diversos, além das centenas de cães que educou, nos revelou segredos que acabaram servindo para muito mais do que só criar um cachorro com eficiência e bom-senso. A compreensão de algumas características do funcionamento do cérebro do animal, a revelação das diferenças entre seus sistemas cognitivos e os nossos, a maneira como processa as informações e administra suas emoções. Conforme íamos tomando conhecimento de códigos desconhecidos, víamos cada vez mais claramente o bichinho se comunicar conosco com absoluta eficiência, entendendo e sendo entendido. Não é o caso aqui de enumerar todas as técnicas e soluções já conhecidas para decodificar os parâmetros que balizam a inteligência do cachorro, mas, apenas para ilustrar, vale mencionar um ponto. Diferente do dos humanos, o cérebro dos cães não processa da mesma forma a noção de tempo. Para eles, a ideia de passado e futuro parece ser algo completamente abstrato (e não o seria para nós igualmente, perguntaria o filósofo...).
Se olharmos bem para as outras formas de vida da natureza, vamos descobrir que estamos cercados de gênios
Assim, uma bronca ou elogio, dados num momento que não seja o exato em que o ato gerador da crítica ou do agrado ocorreu de fato, tornam-se um enigma eterno que jamais será decifrado pelo cachorro. Como esse pequeno aspecto que, uma vez compreendido, transforma em linha reta e clara uma comunicação que tende a ser truncada e sinuosa, há infinitos outros, que fomos aprendendo e experimentando nos primeiros meses e anos com o animal e que geraram um relacionamento muito afetuoso e equilibrado entre ele e os outros da casa. Mas há algo ainda mais fascinante. Quando quem estuda o assunto começa a nos contar o que sabe sobre a ética animal. De novo, estamos falado de um universo enorme de conhecimento que não cabe aqui. Vamos então ao que a mim mais impressionou, entre tantas descobertas sobre o caráter desses animais. Difícil esquecer de quando o professor disse: “Um cão simplifica muito sua relação com a vida. E ela muda muito pouco ao longo do tempo. Nos seus primeiros meses sua existência está focada em duas coisas, nesta ordem: comida e afeto. Depois, conforme vai amadurecendo e ficando mais forte, ele apenas inverte a ordem e passa a privilegiar o afeto, deixando a comida em segundo plano”. Difícil imaginar confirmação mais precisa ao que diz Janine Benyus, a criadora da ciência da biomimética: se olharmos bem para as outras formas de vida da natureza, vamos descobrir que estamos cercados de gênios. Esta é a missão desta edição da Trip. Dar um passeio pelo mundo animal, para ver se conseguimos repensar a noção de inteligência. Para checar conceitos como racionais e irracionais. Para que, seja usando a ciência como fizeram a própria Janine, Paulo Vanzolini e muitos outros, seja se servindo de uma fantasia de zebra de pelúcia como arriscou Arthur Veríssimo, possamos descobrir, de fato, o que é evolução.
Paulo Anis Lima, editor da Trip
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