4 de novembro de 2010

Velado e Revelado


Por Marina Silva

Ao longo de mais de 30 anos construiu-se no Brasil um campo de conhecimento e de ação que, nestas eleições, furou a última carcaça que ainda o mantinha longe do nível mais decisório da vida do país: a política. Com um rico acúmulo de produção teórica, experiências práticas, conquistas legislativas, institucionais e culturais, as propostas socioambientais para um modelo de desenvolvimento que dialogue com o século 21 começam a ser reconhecidas como um projeto nacional, abrindo uma brecha para a formação de nova força política.


Esse é o horizonte. Para consolidá-lo temos longa batalha pela frente, mas o passo essencial está dado. O projeto socioambiental não quer frear a economia nem empatar o crescimento. Quer tão somente fazer o encontro entre economia, ecologia, justiça social e desenvolvimento durável. É preciso amalgamar, juntar as pontas, dar escala e visibilidade ao que já está disperso na realidade, comparar com o modelo ainda dominante, transformar em alternativa real de escolha política.


O caminho está aberto, e muita gente, quase 20 milhões de pessoas, se interessou por ele. Pela primeira vez um projeto identificado com uma visão de transição de grande impacto consegue saltar do quase total desconhecimento para um adensamento eleitoral tão relevante. É uma base excepcional para pensar a construção de uma terceira via, para não só quebrar a polarização conservadora hoje representada pelo confronto PT X PSDB, como para motivar novos contingentes de brasileiros a assumir uma prática política ativa e nova, mais integradora, não destrutiva e menos obcecada por hegemonia.


A experiência de uma campanha desse porte extravasou minha capacidade de apreendê-la em toda sua riqueza, nesse momento. Vi-me entre um Brasil revelado – e que quer se revelar - e um Brasil velado, que quer se esconder na velha política das coisas meio vistas, meio ditas, meio comprometidas, meio esfumaçadas, inteiramente ultrapassadas. No cotejo entre ambos, fica patente o enorme equívoco do Brasil velado. Não percebe a intensa predisposição dos brasileiros a ouvir opiniões sinceras, que valorizam mesmo quando não concordam com elas. Preferem que a disputa se faça pela exposição do pensamento, das propostas e das práticas, não por meio de técnicas de mútua desconstrução, da qual ninguém sai maior. Nem atacante nem atacado, nem a ética nem a política.


Uma revelação honesta vale mais que a resposta ensaiada. Senti isso de maneira enfática na juventude. Em Varginha, Minas Gerais, uma escola inteira pressionou os professores para ir até o auditório da cidade ouvir minha fala. Em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, um grupo de jovens fez por sua própria conta cartazes improvisados de cartolina para aguardar nossa passagem. Essas manifestações movidas a pura vontade me deixam certa de que há uma terceira via política, vigorosa e inovadora, pedindo passagem. Para quem, como eu, disse que queria ser mantenedora de utopias, não poderia haver maior realização.


Ao mesmo tempo, constatei a força dos costumes que empurra muita gente a cobrar dos candidatos o ataque na jugular do oponente, o fazer dos defeitos alheios o seu trampolim. Ao me recusar a isso, parecia a muitos, num primeiro momento, que não estava sendo suficientemente contundente. Parte da imprensa vai muito por essa linha. O que surpreendeu a esses é que a nossa opção teve grande acolhimento. Há, de fato, espaço para tratar de problemas no seu mérito e na qualidade das soluções propostas.


Essas eleições merecem leituras criteriosas e profundas, não meras justificativas partidárias. É preciso reconhecer a exaustão do sistema político e a crise no campo social-democrata que acabou servindo, tanto do lado do PT quanto do PSDB, de biombo para a sobrevida política de velhas oligarquias. A campanha do Partido Verde causou perplexidade porque saiu do roteiro previsível e se legitimou de tal forma que exigiu respostas e sinalizações das demais campanhas. Que isso não seja considerado mero acidente de percurso, que não se pense que é modismo, porque não é.


Agora, o desafio do PV, do campo socioambiental e de todos aqueles que sentiram esperança numa mudança política, é colocá-la de pé. O desafio dos vencedores ou dos que ficarão na oposição é dialogar com a realidade e a complexidade do mundo e do Brasil de hoje, saindo do casulo de suas estratégias de poder reducionistas. Tenho certeza de que todos os eleitores esperam por isso, independentemente de suas paixões partidárias.


Como disse na Carta Aberta enviada a Dilma Roussef e José Serra, “não há mais como fechar os olhos ou dar respostas tímidas e insuficientes às crises que convergem para a necessidade de adaptar o mundo à realidade inexorável ditada pelas mudanças climáticas”. E repito aqui: o principal desafio não é a natureza, é a urgência de encararmos os limites dos nossos modelos de vida e de darmos um salto civilizatório, de valores.


A sociedade, afirmei na Carta Aberta, está entendendo cada vez mais o papel dessa mudança para o país, a humanidade e o Planeta. Os votos que me foram dados podem não refletir conceitualmente essa consciência, mas refletem o sentimento de superação de um modelo. E revelam também a intuição de que o grande nó está na política, porque é nela que se decide a vida coletiva, se consolidam valores ou a falta deles.


Essas eleições nos mostraram uma oportunidade única de inflexão. Será extremamente injusto com o Brasil não aproveitá-la.


Marina Silva, 52, é senadora do Acre pelo PV, foi candidata do partido à Presidência da República nestas eleições e ministra do Meio Ambiente do governo Lula (2003-2008).



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