Fonte: O Eco
Sexta-feira, 17 de março, por volta de 19h. Eike Batista, um dos homens mais ricos e poderosos do Brasil, mexe no twitter, um de seus passatempos favoritos. Com a ferramenta, ele costuma interagir com internautas, dá dicas de como obter sucesso e divulga suas #FrasesEB. Digitando no começo da noite em questão, ele retwitta a mensagem do Grupo EBX, conglomerado que comanda e que reúne empresas nas áreas de petróleo, energia, logística, mineração e indústria naval offshore. Eike é rápido e gosta de velocidade. Teclando, ele reproduz palavra por palavra a mensagem da EBX propagandeando o apoio da OGX, uma das empresas do grupo, a mais uma corrida: “Na madrugada deste domingo, o piloto Bruno Senna, patrocinado pela #OGX, corre pelo Brasil na Fórmula 1! Acompanhe às 3h na @rede_globo”.
Sexta-feira, neste mesmo horário, Thor Batista, filho de Eike, acelera uma Mercedes SLR McLaren na rodovia Washington Luís na Baixada Fluminense. Trata-se de uma máquina feita para corridas que, conforme a descrição no site da Mercedes, leva :“3,8 segundos para acelerar de 0 a 100 km/h; passa a marca dos 200 km/h depois de 10,6 segundos, e leva apenas 28,8 segundos para chegar aos 300 km/h”, podendo atingir inacreditáveis “334 km/h”. O motor é calibre V8 e “desenvolve 626 cavalos de potência e um torque máximo de 780 Nm”. Em outras palavras, é só encostar o pé de leve no pedal que você já está voando. Como isto talvez soe um tanto quanto perigoso, os fabricantes fazem questão de ressaltar que é um modelo construído com “transferência de conhecimento da Fórmula 1” e que os “sofisticados materiais compostos com fibra de carbono na construção do chassi e da carroçaria” permitem “um nível de rigidez e força nunca antes alcançada em veículos de passeio”, o que garante “exemplar nível de proteção dos ocupantes”. Tudo isso graças a “estruturas de impacto de carbono especialmente desenvolvidas ajudam o carro superesportivo a estabelecer novos padrões em sua classe de veículo em termos de absorção de energia”. Thor cresceu com um Mercedes estacionado na sala de casa.
Sexta-feira à noite. Ao mesmo tempo em que o pai Eike faz propaganda da Fórmula 1 no twitter e o filho Thor acelera um carro com tecnologia de Fórmula 1 (em uma estrada e não em um autódromo), o ajudante de caminhoneiro e operário de construção civil Wanderson Pereira da Silva, de 30 anos, pedala pela mesma rodovia. E a história dos três se encontra em uma colisão violentíssima, que afunda a parte da frente do carro superprotegido. Para azar de Wanderson.
Atingido pelo carro de corrida em questão, ele perdeu um braço e uma perna, e teve o peito dilacerado, morrendo na hora. Ao que consta, estava a caminho do mercado,pensando em comprar ingredientes para o bolo de aniversário de sua mulher, Cristina dos Santos Gonçalves, que fez aniversário naquela mesma noite e que preparava uma festa para o sábado. Segundo sua família,Wanderson trafegava pelo acostamento, como de costume. Eike diz que não, que o ciclista estava, na verdade, atravessando a pista e que sua imprudência em entrar na rodovia é que provocou o “acidente”.
Não importa. A tentativa de Eike de responsabilizar o ciclista pela sua morte é frágil, insustentável e, por si só, ridícula. Ainda que tenha pecado por imprudência ou se arriscado a tentar cruzar uma via com tráfego intenso e alta velocidade, Wanderson é mais vítima das circunstâncias do que culpado por qualquer coisa. A rodovia em questão cruza uma área densamente povoada. Não só neste trecho, mas em outros próximos, em vez de redutores de velocidade, lombadas e fiscalização para coibir abusos, as autoridades optaram por tentar conter os pedestres com uma cansativa combinação de barreiras físicas e passarelas. Bloqueios e restrições para quem não tem automóvel. Tudo em nome do fluxo dos que têm. A passagem dos carros se sobrepõe ao direito à vida, à existência. Sem alternativas, não são poucos os moradores locais que transitam pela pista. A estrada, assim como muitas cidades, se transforma em uma versão ampliada de um autódromo. Onde não há lugar para pessoas.
Impossível imaginar, como pretende o empresário, qualquer tendência suicida de Wanderson (leia também: Brasil, o único país em que ciclistas tentam atropelar os carros).
Responsabilidades
A responsabilidade de Thor deve ser considerada. Sem crucificação pura e simples, e sim como uma investigação detalhada e cuidadosa sobre quão imprudente ele foi. É óbvio que a contratação do ex-ministro da Justiça e advogado criminalista, Márcio Thomaz Bastos, para cuidar do caso, desequilibra a situação. E aumenta a vontade de resumir tudo ao estereótipo "playboy rico irresponsável".
Mas é preciso considerar também outras responsabilidades. Também tem culpa quem permite o tráfego de automóveis a 110 km/h em um trecho de rodovia onde circulam pedestres e pessoas de bicicleta. Também tem culpa quem fabrica e comercializa um veículo tão sensível à aceleração, capaz de atingir em segundos deslocamentos bem mais rápidos do que os (já absurdos) 120 km/h de velocidade máxima permitidas no país. Assim como quem permite e se omite para evitar que tal produção continue.
Também têm culpa os políticos que insistem em sistemas de deslocamento de massa baseados em transporte individual rodoviário; opção que vem acompanhada sempre de índices constantes de vítimas fatais sistemáticos, e não acidentais. Sempre haverá alto número de vítimas fatais nas estradas enquanto os deslocamentos seguirem sendo feitos desta maneira, deixando como vítimas principalmente quem não pode pagar por um escudo com tecnologia de Fórmula 1.
É hora de pensar. Por que insistir em tantas rodovias no país? Por que não temos ferrovias para passageiros? Por que insistir em falar em carros “superesportivos” ou “ecoqualquercoisa” quando eles não têm nada de esportivos ou ecológicos? Por que tanta pressa? Por que seguir ignorando os índices absurdos de acidentes fatais constantes e crescentes? Por que glamourizar a velocidade, propagandear a pressa como valor absoluto? Será que é mesmo uma boa ideia transformar corridas de carro em uma febre mundial, transformando pilotos que assumem riscos constantes em heróis e referência para quem é mais jovem? Quais valores estamos transmitindo? Quem ganha com isso?
A velocidade é chave para entender esse e tantos outros casos rotineiros, que não ganham tanto destaque por não envolverem filhos de empresários bilionários, mas que são igualmente graves. Carros de Fórmula 1 têm controle eletrônico de velocidade nos boxes. A gente vai continuar avançando na tecnologia para acelerar, sem nunca pensar em mecanismos para frear e minimizar a gravidade da situação?
Aliás, é emblemático o fato de, após o atropelamento, Eike defender, também pelo twitter, que é normal andar a 80 km/h em área de limite de velocidade de 60 km/h, revelando ignorância sobre segurança no trânsito e/ou falta de respeito à vida. A chance de sobrevivência de um pedestre atropelado por um carro a 60 km/h é de cerca de 15%. A 80 km/h, é praticamente nula. Essa é a diferença que ele desconhece.
Não é por acaso que existem limites estabelecidos. E limite não é uma indicação da velocidade a ser seguida. Não é porque um limite é de 110 km/h que é preciso andar a 110 km/h, 100 km/h ou 90 km/h, ainda mais quando se sabe que há ciclistas ou pedestres regulamente cruzando a pista. Cuidado deveria ser a regra. É o problema de se investir mais na repressão do que na conscientização sobre riscos e responsabilidades. Cria-se uma sociedade infantilizada que não pensa, apenas obedece. Às vezes, nem isso.
Thor foi educado a dar valor a velocidade e atropelou e matou uma pessoa em um sistema instalado em que as mortes são rotineiras e constantes, nada acidentais. Um modelo que continuará da mesma maneira se as demais culpas e responsabilidades não forem também consideradas. E que, por ironia, seu pai alimentava acelerando o twitter na mesma hora em que a tragédia aconteceu.
Que a tragédia faça a família Batista pensar.
Colaborou Eduardo Pegurier.
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